Em
uma oportunidade para discutir questões relacionadas ao surdo senti na
pele minha dificuldade em lidar com a surdez. Só depois dessa conversa e através
do processo de familiarização e estranhamento, é que pude perceber
a postura preconceituosa, paternalista e romantizada que eu tinha do surdo.
Essa percepção ficou evidente, quando comecei a refletir sobre a minha
interação com essa professora. Recordo-me de todas as vezes em que ela me
interrompia para que eu me referisse ao surdo como surdo, e não como
deficiente-auditivo, surdo-mudo, ou mudo. De fato, em função de meu
desconhecimento de tudo o que reverberava nesses nomes, não percebi, naquele
momento, a carga semântica negativa que conotavam.
Então, vez por outra
me referia, aos surdos como “deficientes auditivos” e, em um dado momento da nossa
conversa, a professora, irritadíssima e em um tom muito alterado, falou:
“Surdo! Surdo! Você deve chamá-los de surdos! Se você pretende fazer pesquisa
sobre estes indivíduos, por favor, eles são surdos e não deficientes!”. O que
ficou latente para mim durante nossa interação foi a profunda agressividade e
incômodo dela; isso me levou a monitorar a minha fala e a tomar muito cuidado
para chamá-los sempre de surdos.
O fato é que, na minha visão inicial, a
palavra surdo conotava mais preconceito e parecia que não era um uso sequer
politicamente correto. Não tinha ideia, também, por outro lado, da carga semântica
que os termos deficiente-auditivo, surdo-mudo, e mudo conotavam, constantemente
observados em muitas falas de pessoas leigas na discussão e/ou de especialistas
dentro de uma posição que toma a surdez como uma patologia. Nas minhas idas e
vindas a alguns contextos escolares, e com o aprofundamento em leituras da
área, somadas a inúmeras conversas com pessoas pertencentes às comunidades
surdas entendi a atitude daquela professora.
O que ela estava fazendo era rejeitar
um discurso ideológico dominante construído nos moldes do oralismo, que localiza
o surdo em dimensões clínicas e terapêuticas da “cura”, da “reeducação” e da “normalização”.
Ao utilizar o termo surdo, a professora estava tentando me mostrar um outro
discurso sobre a surdez: o discurso pautado em paradigmas da diversidade linguística e cultural.
Essa
experiência fez-me compreender como estava presa à ideologia dominante ouvinte
e como nela se inscrevia em meu discurso. A minha ignorância sobre a realidade surda
gerou em mim uma atitude vinculada aos estereótipos e aos imaginários sociais que
constituem o poder e o saber clínico. A representação
que fazia do surdo estava ancorada na visão do déficit, na falta da audição,
portanto. Tive que me permitir certo tempo para desconstruir essa visão da
deficiência que estava concretamente amarrada ao termo que utilizava para
nomear os surdos e reconhecer a dimensão política da surdez que o uso do termo
surdo, apropriadamente, conota.
Padden & Humphries apontam que a
deficiência é uma marca que historicamente não tem pertencido aos surdos. Esta
marca sugere auto-representações políticas e objetivos não familiares para o
grupo. Quando os surdos discutem sua surdez, eles usam termos profundamente
relacionados com a sua língua, seu passado, e sua comunidade.
A
questão da terminologia ficou esclarecida para mim. Todavia, voltava a
revivê-la na interação com outros tantos ouvintes que estavam se relacionando
pela primeira vez ou mesmo que já se relacionavam com o mundo da surdez. Era,
então, inevitável relembrar o episódio descrito acima. Percebi que, em todos os
cursos de LIBRAS de que participei, por exemplo, havia por parte dos
professores surdos um tempo, nas aulas, dedicado a explorar e esclarecer as
conotações que o termo deficiente auditivo e seus derivados populares carregam.
Experiência de Audrei Gesser, Doutora em Lingüística Aplicada/Educação Bilíngue pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em seu artigo Do patológico ao cultural na surdez: para além de um e de outro ou para uma reflexão crítica dos paradigmas.
