segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O termo Surdo é correto?

Postado por : LIBRAS -UVA | Data : segunda-feira, fevereiro 12, 2018 | Pasta :

Em uma oportunidade para discutir questões relacionadas ao surdo senti na pele minha dificuldade em lidar com a surdez. Só depois dessa conversa e através do processo de familiarização e estranhamento, é que pude perceber a postura preconceituosa, paternalista e romantizada que eu tinha do surdo. 

Essa percepção ficou evidente, quando comecei a refletir sobre a minha interação com essa professora. Recordo-me de todas as vezes em que ela me interrompia para que eu me referisse ao surdo como surdo, e não como deficiente-auditivo, surdo-mudo, ou mudo. De fato, em função de meu desconhecimento de tudo o que reverberava nesses nomes, não percebi, naquele momento, a carga semântica negativa que conotavam.

Então, vez por outra me referia, aos surdos como “deficientes auditivos” e, em um dado momento da nossa conversa, a professora, irritadíssima e em um tom muito alterado, falou: “Surdo! Surdo! Você deve chamá-los de surdos! Se você pretende fazer pesquisa sobre estes indivíduos, por favor, eles são surdos e não deficientes!”. O que ficou latente para mim durante nossa interação foi a profunda agressividade e incômodo dela; isso me levou a monitorar a minha fala e a tomar muito cuidado para chamá-los sempre de surdos. 

O fato é que, na minha visão inicial, a palavra surdo conotava mais preconceito e parecia que não era um uso sequer politicamente correto. Não tinha ideia, também, por outro lado, da carga semântica que os termos deficiente-auditivo, surdo-mudo, e mudo conotavam, constantemente observados em muitas falas de pessoas leigas na discussão e/ou de especialistas dentro de uma posição que toma a surdez como uma patologia. Nas minhas idas e vindas a alguns contextos escolares, e com o aprofundamento em leituras da área, somadas a inúmeras conversas com pessoas pertencentes às comunidades surdas entendi a atitude daquela professora. 

O que ela estava fazendo era rejeitar um discurso ideológico dominante construído nos moldes do oralismo, que localiza o surdo em dimensões clínicas e terapêuticas da “cura”, da “reeducação” e da “normalização”. Ao utilizar o termo surdo, a professora estava tentando me mostrar um outro discurso sobre a surdez: o discurso pautado em paradigmas da diversidade linguística e cultural. 

Essa experiência fez-me compreender como estava presa à ideologia dominante ouvinte e como nela se inscrevia em meu discurso. A minha ignorância sobre a realidade surda gerou em mim uma atitude vinculada aos estereótipos e aos imaginários sociais que constituem o poder e o saber clínico. A representação que fazia do surdo estava ancorada na visão do déficit, na falta da audição, portanto. Tive que me permitir certo tempo para desconstruir essa visão da deficiência que estava concretamente amarrada ao termo que utilizava para nomear os surdos e reconhecer a dimensão política da surdez que o uso do termo surdo, apropriadamente, conota. 

Padden & Humphries apontam que a deficiência é uma marca que historicamente não tem pertencido aos surdos. Esta marca sugere auto-representações políticas e objetivos não familiares para o grupo. Quando os surdos discutem sua surdez, eles usam termos profundamente relacionados com a sua língua, seu passado, e sua comunidade.

A questão da terminologia ficou esclarecida para mim. Todavia, voltava a revivê-la na interação com outros tantos ouvintes que estavam se relacionando pela primeira vez ou mesmo que já se relacionavam com o mundo da surdez. Era, então, inevitável relembrar o episódio descrito acima. Percebi que, em todos os cursos de LIBRAS de que participei, por exemplo, havia por parte dos professores surdos um tempo, nas aulas, dedicado a explorar e esclarecer as conotações que o termo deficiente auditivo e seus derivados populares carregam.

Experiência de Audrei Gesser, Doutora em Lingüística Aplicada/Educação Bilíngue pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em seu artigo Do patológico ao cultural na surdez: para além de um e de outro ou para uma reflexão crítica dos paradigmas.

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